sexta-feira, 24 de junho de 2011

Da literatura oral à escrita - Cecília Meireles


O oficio de contar histórias é remoto. Em todas as partes do mundo o encontramos: já os profetas o mencionam. E por ele se perpetua a literatura oral, comunicando de indivíduo e de povo o que os homens, através das idades, têm selecionado da sua experiência como mais indispensável à vida.
            Porque essa literatura primitiva começa por ser utilitária. A principio, utiliza a própria palavra como instrumento mágico. Serve-se dela como elemento ritual, compelindo a Natureza, por ordens ou súplicas, louvores ou encantações, a conceder-lhe o que mais importa, segundo as circunstâncias, ao bem-estar humano.
            O valor vem acrescentar-se, depois, como acessório ao primeiro valor, de interesse imediato, Pedir, ordenar, suplicar, louvar – é o essencial. Saber fazê-lo concorre para favorecer o benefício. E implica, também uma especialização. Escolher-se os mais aptos para o ofício, como quem diz: uma seleção profissional. A boa memória, o talento  interpretativo, o interventivo – a imaginação, a mímica, a voz, toda arte de representar – a capacidade de utilizar oportunamente o repertório fazem dos contadores de Histórias, ainda hoje, personagens indispensáveis a determinados ambientes. Basta ver, infelizmente o êxito social dos grandes contadores de anedotas...
            Mas, na verdade, quando se pensa nessas monumentais coleções das Mil e uma noites, do Panchatantra, e muitas outras, que salvaram do esquecimento lendas, histórias, fábulas, canções, adivinhações, provérbios... não se pode deixar de sentir uma profunda admiração por esses narradores anônimos que com a disciplina da sua memória e da sua palavra salvaram do esquecimento uma boa parte da educação da humanidade.
            Um dia, o ocidente procurou repetir essa lição por escrito: Charles Perrault, Mme. D’Aulnoy. Os irmãos Grimm e outros coligiram narrativas que encontraram ainda sob a forma oral, entre a gente do povo, para que perdurassem escritas. Quando o ultimo narrador tivesse desaparecido.
            Não há quem não possua entre suas aquisições da infância, a riqueza das tradições, recebidas por via oral. Elas precederam de livros, e muitas vezes os substituíram. Em certos casos, elas mesmas foram o conteúdo desses livros.
             O negro na sua choça, o índio na sua aldeia, o lapão metido no gelo, o príncipe em seu palácio, o camponês à sua mesa, o homem da cidade em sua casa, aqui, ali, por toda parte, desde que o mundo é mundo, estão contando uns aos outros o que ouviram contar, o que lhes vem de longe, o que serviu a seus antepassados, o que vai servir para seus netos, nesta marcha da vida.
            Conta-se e ouve-se para satisfazer essa íntima sede de conhecimento e  instrução que é, própria da natureza humana. Enquanto se vai contando, passam os  tempos do inverno, passam as doenças e as catástrofes  - como nos contos do Decamerom - chegam  as imagens do sonho – como quando as crianças docemente descaem adormecidas.
             O gosto de histórias é idêntico ao de escrever- e os primeiros narradores são antepassados anônimos  de todos os escritores. O gosto de ouvir é como o gosto de ler. Assim, as bibliotecas, antes de serem estas infinitas estantes, com as vozes presas dentro dos livros, foram vivas e humanas, rumorosas, com gestos, canções, danças entremeadas às narrativas.
            As conquistas da imprensa não inutilizaram por completo o ofício do narrador. Por toda parte ele se mantém, e cada instante reaparece, por discreta que seja sua atuação. Antes de todos os livros, ele continua presente  nas manifestações incansáveis da literatura tradicional: na canção de berço que a mãe murmura para seu filho; nas histórias que mães e avós, criadas, aos pequenos ouvintes transmitem; nas falas dos jogos, parlendas, nas cantigas e  adivinhas com que as próprias crianças se entretêm umas nas outras, muito antes da aprendizagem da leitura.
            Por isso, quando ainda não havia bibliotecas infantis, não era tão grande e sensível a sua falta; o convívio humano as substituía. Tempos em que a família, aconchegada, criava um ambiente favorável à formação da criança.
            O livro vem suprimir essas ausências. Tudo quanto se aprendia por ouvir contar, hoje se aprende pela leitura. E, examinando-se boa parte dos livros – ainda os melhores – que as crianças utilizam, aí encontramos as histórias da carochinha que pertencem ao tesouro geral da humanidade: as Mil e uma noites, as grandes narrativas que embalaram a antigüidade, como essa do marinheiro Simbad - os contos de Perreault, Mme.d´Aulnoy, os irmãos Grimm recolheram, histórias vindas de outras coleções, fragmentos de epopéias – tudo se comprime nesses livros, aproximando tempos e países, permitindo o convívio unânime dos povos, em poucos volumes...



MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.